terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A liberdade do negro é uma liberdade guerreira



A frase, que intitula estes comentários, que não é de minha autoria, era muito usada por nós militantes do Movimento Negro nos anos oitenta e noventa. Tinha para mim o sentido de duas necessidades. A primeira era a busca da liberdade, e a segunda, em consequência, a constante necessidade de guerrear, lutar por essa liberdade. Ir e vir não eram direitos assegurados aos afro-brasileiros, enquanto direitos naturais, bem como a liberdade de expressão por exemplo. No entanto, o que nos preocupava eram os direitos ao trabalho, a educação entre outros direitos que afirmam as liberdades substantivas historicamente negadas a aqueles, que não refletem o modelo cristão-ocidental.
Os que não refletem o modelo critão-ocidental, os afro-brasileiros em nosso caso, tem a liberdade como essência de sua cosmogonia. Os mitos que explicam o mundo para nossos ancestrais estão sempre em busca da liberdade. Portanto é este que deve nortear nossas lutas. Entretanto, pensar a liberdade pouco esteve no horizonte de nossas lutas. Mas o que é o racismo, senão a negação da liberdade. Por isso, cabe ao estado promover meios de lutas contra este tipo de restrição a liberdade.
O pensamento liberal clássico é intransigente na defesa das liberdades individuais. Defende-as acima de todos os demais direitos dos cidadãos. Entretanto, o pensamento liberal moderno, sempre priorizando a liberdade individual, como centro de seu pensamento, admiti a existência de conflito entre liberdade formal e a liberdade substancial, aquela que decorre dos conflitos sociais. Esta última deve ser preocupação do Estado, com vistas a impedir avanços nas desigualdades sociais.
O pensamento liberal no Brasil é “uma ideia fora do lugar”. Os “liberais mitigados” foram os principais inimigos das cotas, juntamente com grupos marxistas radicais. Estranho paradoxo: os herdeiros dos antigos escravagistas aliados aos revolucionários da classe operária[1]. Este liberal-oportunismo defende apenas a diminuição da carga tributária, de forma a impedir a possibilidade do estado prover as liberdades substantivas. Portanto, vamos dialogar com verdadeiros liberais.
John RAWS cunhou a seguinte frase, que dá bem a dimensão da preocupação dos liberais com as injustiças sociais:“... Aqueles que defendem ordenações injustas e lucram com elas, negando com desprezo os direitos e as liberdades dos outros, provavelmente não deixarão que escrúpulos relacionados ao estado de direito interfiram em seus interesses em casos particulares” .
            Com efeito, os críticos das politicas de “discriminação positiva”, alegando violência às liberdades estão na contra mão do pensamento liberal. Pois defendem “ordenações injustas e lucram com elas...”. Ninguém pode negar que o percentual de estudantes negros nas universidades públicas brasileiras não seja fruto de uma ordenação injusta. Bem como, exercendo a função de professores.
Existe nas sociedades modernas, principalmente nas pós-coloniais acúmulos de patrimônio, sejam econômicos, sejam culturais decorrentes de posições herdades de ações ocorridas no passado, na maioria das vezes pouco éticas. A concepção liberal “tenta corrigir isso acrescentando á exigência de carreiras abertas a talentos a condição adicional de uma equitativa igualdade”. Esta equitativa igualdade busca observar as desigualdades sociais, agir de forma a tratar seus agentes de forma desigual, procurando atender a possibilidades de que todos tenham uma “oportunidade equitativa”. Com isto, novos talentos vêm à tona no processo de competição no mercado.
Isto não seria possível sem a ação de uma força, digamos para resumir, impor-se ao mercado. Assim, conclui RAWS “A interpretação liberal... busca, então mitigar a influência das contingências sociais e boa sorte espontânea sobre a distribuição das porções. Para atingir esse objetivo é necessário impor ao sistema social condições estruturais básicas adicionais”. A imposição se faz necessária, uma vez que as resistências advêm justamente daqueles que se beneficiam do sistema injusto. A este RAWS informa, sem que os falsos “liberais mitigados” brasileiras deem ouvidos, “... ele se apoia na ideia de que numa economia competitiva (com ou sem propriedade privada) favorecendo um sistema de classes aberto, desigualdades excessivas não será a regra.
            No caso do Brasil, as desigualdades excessivas são a regra. O percentual ínfimo de brasileiros afrodescendentes na graduação evidencia esta disparidade. Como também nos cursos de pós-graduação. E o mais agravante ainda, repetimos, são os percentuais de afrodescendente nas universidades como professores. O acesso aos cursos de pós-graduação, assim como a carreira do magistério superior são concursos eivados de subjetividade.
Reconhecer a existência de desigualdades e utilizar os instrumentos de políticas públicas para corrigi-las, tem sido tarefa desempenhada cada vez com mais desenvoltura pelos governos, principalmente quando pilotado por governos liberais. Pelo menos nos países efetivamente capitalista.
Assim é observado no caso das políticas de discriminação positiva, principalmente no caso das cotas para ingresso nas universidades. Por exemplo, o mais ruidoso exemplo de políticas de discriminação positiva, as cotas nos Estados Unidos nascem no governo liberal progressistas de Kennedy nos anos 60. Na França, da “ liberté, egalité e fraternité”, são socialistas de François Holande que são contra. Ficando os liberais de Nicola Sarkozy, majoritários na defensiva, num sociedade dita avançada, mas profundamente racista.
Por isso somos obrigado a reconhecer que os liberalismo praticado depois do manifesto comunista esta muito longe do liberalismo de seus fundadores. A social democracia implantada na Europa, necessária para conter o “espectro do comunismo” que a rondava, trouxe o verniz social necessário para popularizar  esta ideologia.
Este liberalismo social traz ao debate da produção e da circulação de riquezas a possibilidade de avanços na distribuição. Para Raws, “o papel do princípio da igualdade equitativa de oportunidade é assegurar que o sistema de cooperação seja um sistema de justiça pura...”. 
Mesmo no país das “ideias fora do lugar”, alguns “liberais reciclados”, como Merquior, afirma : Se suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das liberdades modernas, deixar tudo entregue ao seu império é restringir significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a minorias  e a minorias  composta de privilegiados pelo berço, e não só pelo mérito”.
Nossos “liberais” acreditam que o mercado é simplesmente espaço de relações de troca. Vamos recorrer a um marxista para dar uma explicação convincente para as distorções no mercado brasileiro. Etienne Balibar afirma que o mercado é uma “estrutura modelada por várias instituições”. Em nosso caso, a instituição cultural tem um peso significativo.
O Estado deve garantir as liberdades individuais, assegurar aos agentes privados condições de produção de riqueza, principalmente através da eliminação dos entraves burocráticos econômicos e, principalmente subjetivos, que objetivam impedir que o cidadão ameace a estabilidade dos segmentos historicamente privilegiado. Com políticas públicas dirigidas a seguimentos historicamente excluído, este objetivo é rapidamente atendido.
A política de  reparação é a ação do estado para se contrapropor as injustiças sociais, para nós o racismo. Este é o papel do estado, mesmo na concepção liberal. Isto é, combater as desigualdades. Estas desigualdades deixadas a mercê do mercado tendem a se agravar. Os indivíduos independentemente da cor da pele, atuando livremente no mercado são capazes de produzir riquezas que beneficiaram todos os segmentos sem ocasionar desequilíbrio. Para que isto aconteça, concomitantemente, deve ser implantadas políticas quem desarticulam todas as redes de opressão. A principal malha desta rede é o racismo.
Em nosso caso, as forças do mercado agem com um sobre peso da “instituição cultural” porque os afro-brasileiros são majoritários neste mercado. Esta condição obriga o segmento, minoritário, mas politicamente hegemônico, a reforçar os controles do Estado sobre o cidadão afro-brasileiro. O exame vestibular, o concurso para professor, a distribuição de verbas para pesquisa são instrumentos cruéis de controle cultural.
Em resumo, é fundamental pensar o racismo como restrição a liberdade dos afro-brasileiros. Com isso exigir uma ação do estado contra esta forma de restrição a liberdade, garantindo com isso mais condição para liberdades substanciais.  Isto é, garantido cotas nas universidades em todos os níveis, assim como a utilização de instrumentos econômicos para a transformação social.





[1] Nilo Rosa dos Santos, Elite e dominação politica.

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