A frase, que intitula estes comentários,
que não é de minha autoria, era muito usada por nós militantes do Movimento
Negro nos anos oitenta e noventa. Tinha para mim o sentido de duas necessidades.
A primeira era a busca da liberdade, e a segunda, em consequência, a constante
necessidade de guerrear, lutar por essa liberdade. Ir e vir não eram direitos
assegurados aos afro-brasileiros, enquanto direitos naturais, bem como a
liberdade de expressão por exemplo. No entanto, o que nos preocupava eram os
direitos ao trabalho, a educação entre outros direitos que afirmam as liberdades
substantivas historicamente negadas a aqueles, que não refletem o modelo
cristão-ocidental.
Os que não refletem o modelo critão-ocidental,
os afro-brasileiros em nosso caso, tem a liberdade como essência de sua
cosmogonia. Os mitos que explicam o mundo para nossos ancestrais estão sempre
em busca da liberdade. Portanto é este que deve nortear nossas lutas. Entretanto,
pensar a liberdade pouco esteve no horizonte de nossas lutas. Mas o que é o
racismo, senão a negação da liberdade. Por isso, cabe ao estado promover meios
de lutas contra este tipo de restrição a liberdade.
O pensamento liberal clássico é
intransigente na defesa das liberdades individuais. Defende-as acima de todos
os demais direitos dos cidadãos. Entretanto, o pensamento liberal moderno,
sempre priorizando a liberdade individual, como centro de seu pensamento,
admiti a existência de conflito entre liberdade formal e a liberdade
substancial, aquela que decorre dos conflitos sociais. Esta última deve ser
preocupação do Estado, com vistas a impedir avanços nas desigualdades sociais.
O pensamento liberal no Brasil é “uma ideia fora do lugar”. Os “liberais mitigados”
foram os principais inimigos das cotas, juntamente com grupos marxistas
radicais. Estranho paradoxo: os herdeiros dos antigos escravagistas aliados aos
revolucionários da classe operária[1].
Este liberal-oportunismo defende apenas a diminuição da carga tributária, de
forma a impedir a possibilidade do estado prover as liberdades substantivas.
Portanto, vamos dialogar com verdadeiros liberais.
John RAWS cunhou a seguinte frase, que dá
bem a dimensão da preocupação dos liberais com as injustiças sociais:“... Aqueles que defendem ordenações
injustas e lucram com elas, negando com desprezo os direitos e as liberdades
dos outros, provavelmente não deixarão que escrúpulos relacionados ao estado de
direito interfiram em seus interesses em casos particulares” .
Com efeito,
os críticos das politicas de “discriminação positiva”, alegando violência às
liberdades estão na contra mão do pensamento liberal. Pois defendem “ordenações injustas e lucram com elas...”.
Ninguém pode negar que o percentual de estudantes negros nas universidades
públicas brasileiras não seja fruto de uma ordenação injusta. Bem como, exercendo
a função de professores.
Existe nas sociedades modernas,
principalmente nas pós-coloniais acúmulos de patrimônio, sejam econômicos, sejam
culturais decorrentes de posições herdades de ações ocorridas no passado, na
maioria das vezes pouco éticas. A concepção liberal “tenta corrigir isso acrescentando á exigência de carreiras abertas a
talentos a condição adicional de uma equitativa igualdade”. Esta equitativa
igualdade busca observar as desigualdades sociais, agir de forma a tratar seus
agentes de forma desigual, procurando atender a possibilidades de que todos
tenham uma “oportunidade equitativa”. Com isto, novos talentos vêm à tona no
processo de competição no mercado.
Isto não seria possível sem a ação de uma
força, digamos para resumir, impor-se ao mercado. Assim, conclui RAWS “A interpretação liberal... busca, então
mitigar a influência das contingências sociais e boa sorte espontânea sobre a
distribuição das porções. Para atingir esse objetivo é necessário impor ao
sistema social condições estruturais básicas adicionais”. A imposição se
faz necessária, uma vez que as resistências advêm justamente daqueles que se
beneficiam do sistema injusto. A este RAWS informa, sem que os falsos “liberais
mitigados” brasileiras deem ouvidos, “... ele
se apoia na ideia de que numa economia competitiva (com ou sem propriedade
privada) favorecendo um sistema de classes aberto, desigualdades excessivas não
será a regra.
No caso do
Brasil, as desigualdades excessivas são a regra. O percentual ínfimo de
brasileiros afrodescendentes na graduação evidencia esta disparidade. Como
também nos cursos de pós-graduação. E o mais agravante ainda, repetimos, são os
percentuais de afrodescendente nas universidades como professores. O acesso aos
cursos de pós-graduação, assim como a carreira do magistério superior são
concursos eivados de subjetividade.
Reconhecer a existência de desigualdades e
utilizar os instrumentos de políticas públicas para corrigi-las, tem sido
tarefa desempenhada cada vez com mais desenvoltura pelos governos,
principalmente quando pilotado por governos liberais. Pelo menos nos países
efetivamente capitalista.
Assim é observado no caso das políticas de
discriminação positiva, principalmente no caso das cotas para ingresso nas
universidades. Por exemplo, o mais ruidoso exemplo de políticas de
discriminação positiva, as cotas nos Estados Unidos nascem no governo liberal
progressistas de Kennedy nos anos 60. Na França, da “ liberté, egalité e fraternité”, são socialistas de François Holande
que são contra. Ficando os liberais de Nicola Sarkozy, majoritários na
defensiva, num sociedade dita avançada, mas profundamente racista.
Por isso somos obrigado a reconhecer que os liberalismo
praticado depois do manifesto comunista esta muito longe do liberalismo de seus
fundadores. A social democracia implantada na Europa, necessária para conter o
“espectro do comunismo” que a
rondava, trouxe o verniz social necessário para popularizar esta ideologia.
Este liberalismo social traz ao debate da produção e da
circulação de riquezas a possibilidade de avanços na distribuição. Para Raws, “o
papel do princípio da igualdade equitativa de oportunidade é assegurar que o
sistema de cooperação seja um sistema de justiça pura...”.
Mesmo no país das “ideias fora do lugar”, alguns
“liberais reciclados”, como Merquior, afirma : “Se suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das
liberdades modernas, deixar tudo entregue ao seu império é restringir
significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a minorias e a minorias
composta de privilegiados pelo berço, e não só pelo mérito”.
Nossos “liberais” acreditam que o mercado é simplesmente
espaço de relações de troca. Vamos recorrer a um marxista para dar uma
explicação convincente para as distorções no mercado brasileiro. Etienne
Balibar afirma que o mercado é uma “estrutura
modelada por várias instituições”. Em nosso caso, a instituição cultural
tem um peso significativo.
O Estado deve garantir as liberdades individuais,
assegurar aos agentes privados condições de produção de riqueza, principalmente
através da eliminação dos entraves burocráticos econômicos e, principalmente
subjetivos, que objetivam impedir que o cidadão ameace a estabilidade dos
segmentos historicamente privilegiado. Com políticas públicas dirigidas a
seguimentos historicamente excluído, este objetivo é rapidamente atendido.
A política de
reparação é a ação do estado para se contrapropor as injustiças sociais,
para nós o racismo. Este é o papel do estado, mesmo na concepção liberal. Isto
é, combater as desigualdades. Estas desigualdades deixadas a mercê do mercado
tendem a se agravar. Os indivíduos independentemente da cor da pele, atuando
livremente no mercado são capazes de produzir riquezas que beneficiaram todos
os segmentos sem ocasionar desequilíbrio. Para que isto aconteça,
concomitantemente, deve ser implantadas políticas quem desarticulam todas as
redes de opressão. A principal malha desta rede é o racismo.
Em nosso caso, as forças do mercado agem com um sobre
peso da “instituição cultural” porque os afro-brasileiros são majoritários
neste mercado. Esta condição obriga o segmento, minoritário, mas politicamente
hegemônico, a reforçar os controles do Estado sobre o cidadão afro-brasileiro.
O exame vestibular, o concurso para professor, a distribuição de verbas para
pesquisa são instrumentos cruéis de controle cultural.
Em resumo, é fundamental pensar o racismo como restrição a
liberdade dos afro-brasileiros. Com isso exigir uma ação do estado contra esta forma
de restrição a liberdade, garantindo com isso mais condição para liberdades
substanciais. Isto é, garantido cotas
nas universidades em todos os níveis, assim como a utilização de instrumentos econômicos
para a transformação social.